sábado, 27 de dezembro de 2014

#17 - PALAVRAS DUM AVESTRUZ TODO GRIS, António Botto

Arrancaram-me as penas
E eu sofro sem dizer nada:
-- Sou ave
Bem educada.

E, se quisesse, 
Podia
Morder-lhes as mãos morenas
A esses
Que sem piedade
Me roubaram estas penas que me cobrem;

E, no entanto,
Sem o mais breve gemido,
O meu corpo
Vai ficando 
Desguarnecido.

E elas, 
Aquelas
Que se enfeitam, doidamente,
Com estas penas formosas
-- Que são minhas! --
Passam por mim, desdenhosas,
Em gargalhadas mesquinhas.

Sim, eu sofro sem dizer nada:
-- Sou ave
Bem educada.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

#16 - OS AMIGOS, Camilo Castelo Branco

Amigos cento e dez e talvez mais,
Eu já contei! vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente,
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

Que vamos nós (diziam) lá fazer,
Se ele está cego, não nos pode ver...
Que cento e nove impávidos marotos.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

#15 - O GATO, Jules Renard

O meu não come ratos, não gosta. Se apanha algum, é para brincar com ele.
Quando brincou tudo, poupa-lhe a vida, e vai sonhar noutra parte, o inocente,
          [sentado no caracol do seu rabo, a cabeça fechada como um punho.
Mas, por causa das garras, o rato morreu.


(trad. Jorge de Sena)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

#14 - A PIADA PRIMEIRO A DESGRAÇA DEPOIS, Daniel Maia-Pinto Rodrigues

Agora vendo assim à distância
a Sandra até era uma rapariga engraçada --
sempre alegre, sincera, romântica.
Viu a Atracção Fatal e o África Minha
soube seguir os conselhos da Manuela
e viu outros filmes de fugir da linha
isso de atracções e áfricas era tudo dela.

E num vai de ir nesse deleite
fez-se ao Continente Negro
pensou fazer uns safaris
e visitar o Kilimandjaro
que até parece que não é caro.

Pensou também em conhecer o Tarzan
mas ele afinal parece que era mau
não dava beijos e era de poucas falas
só dizia: eu Tarzan, tu vê lá se te calas.

E pensou, claro, em salvar da extinção
o Tigre da Malásia, que nem é de África
mas isto eles é tudo bicho.

E sonhou com o Robert Redford
que vinha num Mustang vermelho
e tinha logo ali com ela
um alto Esplendor na Relva.
E realmente algo de carnal aconteceu
mas quem apareceu
foi um leão, o rei da selva.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

#13 - CAMPANHA ELEITORAL, Armando Freitas Filho

O candidato funga:
flácida e fofa
figura inflada
se inflama -- fala:

feixe de frases
feitas: fraseado
falaz se forma
na furna da voz;

na boca da urna,
língua de trapo
tropeça na areia
da arenga: arena.

Ensebado embusteiro
balança o bestunto
besuntado -- bestia
lógico lesa o povo:

no rádio o rugido
no cinema o aceno
no jornal o jargão
no comício o vício

no vídeo o vírus
da fraude invade
o veludo da voz
e envolve a fala;

ramerrão reumático
ruminante -- retrato
três por quatro na
televisão: de-pu-ta-do.

#12- A UMA FREIRA QUE, SATIRIZANDO A DELGADA FISIONOMIA DO POETA, LHE CHAMOU PICA-FLOR. Gregório de Matos

Se pica-flor me chamais,
Pica-flor aceito ser,
Mas resta agora saber
Se no nome que me dais
Meteis a flor que guardais
No passarinho melhor!
Se me dais este favor,
Sendo só de mim o pica
E o mais vosso, claro fica
Que fico então pica-flor.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

#11 - "Levando um velho avarento", Bocage

Levando um velho avarento
Uma pedrada num olho,
Pôs-se-lhe no mesmo instante
Tamanho como um repolho.

Certo doutor, não das dúzias
Mas sim médico perfeito,
Dez moedas lhe pedia
Para o livrar do defeito.

«Dez moedas! (diz o avaro)
Meu sangue não desperdiço:
Dez moedas por um olho!
O outro dou eu por isso.»

terça-feira, 16 de setembro de 2014

#10 - PONY EXPRESS, Dick Hard

Se as paixões
não são correspondidas
a culpa pode muito bem
ser dos Correios

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

#9 - "Ela era um docinho", Tiago Gomes

Ela era um docinho
com muitas frutas cristalizadas.

O seu pai era um despertador
com pontualidade suíça.

A minha amiga ria muito
das piadas que eu dizia
e gostava de poesia.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

#8 - ANTÁSTICO, José Correia Tavares

O dono do pombal fronteiro à minha casa
só recatados gaviões brancos rabo em leque
nunca topou que eu pomba negra arrasto a asa
e lhe fiz da honra das filhas pechisbeque

Um pouco mais de Sol e Mário foras brasa
vá lá fóssil molar em anta cromeleque
é antástico não se ver mesmo na vasa
onde cravou o palafita seu espeque

Porque pateta tanto rima com poeta
como com atleta viva o lugar comum

Tenho há muito o javardo ao alcance da seta
besta lesta na besta e que esta morra pum

Dois colmilhos assim sempre valem algum

sexta-feira, 25 de julho de 2014

#7 - S PORTUGUÊS, Liberto Cruz

Sertório

Sebastião

Saldanha

Sidónio

Salazar

Spínola

Sá-Carneiro

Soares

Sampaio

Santana

Sócrates

quinta-feira, 24 de julho de 2014

#6 - ARTE POÉTICA, Mário Cesariny

a) o metro

creio em deus pá'
um dois três quá
tod' poderô'
um dois dois três
criador do céu e da té'
seis sete oito
e em jesus cris'
nove dez on'
nosso senhor
ze doze trê'
o qual está sentá'
quatorze quinze
à mão direi'
zasseis zassete
de deus pàd'tôd'poderô'
um dois três um dois três um quatro quatro

terça-feira, 3 de junho de 2014

#4 - RITMOS, Ana Luísa Amaral

E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:
a prosódia da mão, a ervilha dançando
em redondilha.
Misturar ritmos em teia apertada: um vira
bem marcado pelo jazz, pas
de deux: eu, ervilha e mais ninguém.

De vez em quando o salto: disco sound
o vazio pós-moderno e sem sentido
Ah! hedónica ervilha tão sozinha
debaixo do fogão!

As irmãs recuperadas ainda em anos 20,
o prazer da partilha: cebola, azeite
blues desconcertantes, metamorfoses em
refogados rítmicos

(Debaixo do fogão
só o silêncio frio)

terça-feira, 22 de abril de 2014

#3 - GATO, Alexandre O'Neill

Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?

sábado, 12 de abril de 2014

#2 - "Não adormeças logo agora", Daniel Maia-Pinto Rodrigues

Não adormeças logo agora
que eu estava mais disposto e fluente
a falar-te, ainda que de novo, da contemporaneidade

ou não adormeça eu
logo agora
que o teu cabelo se encosta
à suavidade das almofadas
animando o amor do Donald e da Daisy
que, entretanto, já transpuseram
a barreira lisa do pano e do desenho
e se encaminham já para o quarto ao lado.